domingo, 4 de dezembro de 2011

Conto: Canção da Ziza

CANÇÃO DA ZIZA

Por Fernanda Berthoud
                Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá...” – Ziza passava o dia balbuciando esses versinhos, onde quer que ela estivesse: lavando roupa no rio, varrendo o terreiro, cuidando dos pintos ou no celeiro. Ziza se sentia íntima de Gonçalves, como se tivesse algum dia proseado cara a cara com ele. Apesar de somente saber esse trecho da famosa Canção, Ziza repetia e repetia sem hesitação.
                Ziza, uma mulher de vinte e poucos anos, com aparência de mais velha, de pele negra, como noite em eclipse e sem estrelas; olhos grandes, atentos e ariscos, mãos calejadas pelo tanto de afazeres diários, pés calçados com sandálias surradas e esgarçadas e dona de um enorme e belo sorriso. Não tinha tempo feio para Ziza. Acordava junto com o galo, fosse com chuva ou frio, estava sempre disposta e alegre, ora com suas cantorias, ora com o sabiá de Gonçalves em sua boca, o que não se via era Ziza em silêncio. Quando amanhecia, agradecia pelo dia. Ficava maravilhada em ouvir os pássaros a cantar no canteiro do quintal. Dava-se um vento, ou mesmo vendaval, corria a girar entre as roupas do varal.
               Quando não tinha mais afazeres na casa da patroa, sentava nas pedras lá do rio, num momento nada à toa, para admirar o pôr-do-sol e gritava:
                - “Meu Deus, que paisagem mais linda, que coisa mais boa!”. E saia agradecendo em voz alta, olhando para o céu, por viver nessa terra abençoada, cheia de cores e de flores, de céu azul, azulzinho e de noites estreladas, de chuva fina e refrescante e até mesmo descontroladas.
                Certo dia, incomodada pela alegria de Ziza, sua patroa estabeleceu que a negrinha não teria mais o direito de manifestar seu prazer em morar naquelas terras. Sua patroa era nascida na Alemanha, e em tempos de guerra veio morar no Brasil quando só tinha seis anos, mas os costumes e sua educação eram baseados em sua terra natal. Era fria, não demonstrava emoção e a alegria de Ziza já estava lhe fazendo mal.
                Ziza então, proibida de balbuciar “... minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá...”, passava a se sentir vazia e triste. Não podia elogiar o dia e nem a noite, nem as flores, nem a lua, nem as borboletas, nem nada, porque a patroa já olhava fulminante para a pobre solitária.
                Os dias foram passando. Ziza já parecia mais acabada, fora definhando, por ter que ficar calada. Até que chegou um dia, aliás, uma noite enluarada. Ziza foi para o terreiro, se deitou sobre folhas de bananeira, se enrolou todinha, ficando para fora somente seus olhos certeiros que encantados namoravam a lua grande e brilhosa, na imensidão de um céu negreiro.
                Ali, deitada e silenciosa resolveu criar com a ajuda de Gonçalves a sua própria Canção do Exílio:
                -“Selaram minha boca
                Elogiar eu não posso mais
                Minha terra, minhas flores
                Até mesmo os animais.
                A patroa vingativa
                Fria e calculista
                Selou a minha boca
                Elogiar eu não posso mais.
                Não permita, oh Deus, que eu morra
                Sem que eu possa bendizer
                Tudo que tem em minha terra
                Demonstrar meu bem querer
               Dê-me forças para falar
                E poder engrandecer
                O que há em minha terra
                O que me faz feliz viver.
                Selaram minha boca, oh Deus,
                Agora não tenho paz
                Elogiar a minha terra
                Elogiar, eu não posso mais”.
              Terminada sua canção, seus olhos foram se fechando, lentamente. Seu corpo que tremia pela emoção já não manifestava nenhuma reação. Sua última lembrança foi de rever seus pais dizendo que sentia saudades da terra pátria, mãe África, e dela correndo entre as flores do campo toda feliz porque a mãe dizia que ela era a pequena negra nascida em berço esplêndido da nossa pátria amada, Brasil.
                Caro leitor, Ziza não morreu naquele dia. Acordou depois desse sonho, toda determinada e contente, porque sabia que fazia parte da nossa gente, da nossa terra que tem palmeiras onde cantam alegremente os sabiás e desse dia em diante não haveria nenhuma pessoa que lhe fizesse calar.

** Créditos da Imagem: Pintura a Óleo de Cristina Rabello

Um comentário:

LIFE - Amigas da Leitura disse...

Olá...

Quero apresentar-lhes o meu Segundo Conto escrito até hoje.

Nunca tive antes contato com esse tipo de texto, até me deparar com o Desafio de Literatura da faculdade, onde pedia para escrever um conto e classificá-lo de acordo com os Movimentos Literários.

Pois bem, escrevi um conto que se encaixa na Primeira Fase do Romantismo, com tendências Indianistas e Ufanistas, pois o conto relata amor a pátria e a vida no campo.

Espero que vocês gostem...
Espero que eu consiga fazer outros contos mais... porque confesso que gostei desse estilo de escrita.

Em breve postarei o Primeiro Conto que escrevi, bem diferente desse...rs

Beijos

Fernanda Berthoud